Vendo todo esse movimento midiático em torno de Jô Soares, me lembrei como se fosse hoje, do manifesto feito por Edison da Luz durante a exposição Coleção Matilde Matos, realizada no Palacete das Artes, em Salvador. Completamente atual.
A mostra foi uma homenagem feita pelo Estado, a pedido dos artistas, para a crítica de arte Matilde Matos. Ela, ainda consciente, recebeu todo o carinho, agradecimento e homenagens em vida e desfrutou de cada momento.
Nesta ocasião Edison da Luz, Artista plástico consagrado em Bienais de São Paulo e fora do Brasil, outrora companheiro de Matilde, me liga e fala mais ou menos assim: “Kithi, temos que fazer um manifesto durante a exposição de Matilde. Tenho uma instalação pronta, chama-se “A Morte do Abutre”. Eu acho um bom momento para chamar a atenção deste hábito comum, na nossa sociedade, de homenagear as pessoas depois de mortas. Felizmente com Matilde está sendo diferente, mas ainda não é comum”.
Eu era a produtora executiva do evento e lhe respondi: “vamos. Concordo e assino o manifesto”.
Naquele momento foi um disse que não me disse. Achando ser um convite ao infortúnio por Matilde já ter uma idade avançada, muitos não queriam um caixão exposto. Mas, alguns de nós entendíamos o cerne da questão e Matilde adorou a ideia. Ela que sempre esteve muito à frente do seu tempo, concordava e apoiava o movimento. Fizemos.
Com esculturas feitas de cipó, material frequentemente utilizado por Edison, a instalação é um enterro com imagens representando pessoas que tem um abutre no lugar da cabeça. Esses seres carregavam um caixão. O abutre é aquele que se alimenta dos mortos. O manifesto escrito com o título “O Funeral da Cultura do Abutre”, colocado ao lado da instalação intitulada “A Morte do Abutre”, chamava a atenção para as homenagens serem feitas as pessoas enquanto vivas e produtivas – leia o manifesto na integra logo abaixo.
Na verdade, este movimento é um chamado para o amor, para que consigamos levar ao outro o reconhecimento pelos seus feitos ainda em vida. Imagine se Jô Soares pudesse ver e ouvir, depois de uma pandemia, uma grande homenagem por todos os seus feitos? Uma celebração ao seu aniversário, a sua vida, as suas produções? Quanta alegria, energia amorosa e bênçãos seriam levadas até ele? Já imaginou?
Edison da Luz é um artista inquieto, questionador, um revolucionário, nas palavras de Matilde, o melhor de todos.
Enquanto a Bahia vivia escondida, na periferia da produção artística nacional, imposta pela dura realidade da discriminação sofrida pelo povo nordestino, Edison liderou um grupo de artistas que invadiu a Bienal de São Paulo no final da década de 60, e juntos apresentaram o Etsedron, um Nordeste contrário a força diminutiva que sempre impuseram ao pensar, ao fazer e a cultura nordestina. Esses artistas iniciaram uma revolução no modo de pensar a arte no país. Edison e Matilde defendiam uma arte brasileira de caráter antropológico, fundamentada no saber da terra, na brasilidade.
Agora eu pergunto: onde estão todos que movimentam, institucionalmente falando, a arte na Bahia? Onde está o Estado que não coloca em evidência um dos grandes artistas desta terra? Estamos esperando a sua morte para celebrar a sua capacidade de transformar, com arte, conhecimento e sabedoria, a sua realidade de pele negra, nordestina, pobre em uma das principais lideranças do pensamento artístico brasileiro?
Edison ainda está vivo, lúcido e produzindo.
Salve a Bahia, Senhor.
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