Santa Ceia dos Orixás - 4.40 x 1,60m
30 abril 2019
Essa reportagem fala de dois artistas brasileiros unidos pela arte em Paris. Nil faz canções falando da vida, de Deus e dos Encantados. Ed pinta sem pinceis os Orixás, Nossa Senhora e faz esculturas em movimento. Se tornaram irmãos por opção.
Da Casa da Música ao
Atelier Museu de Ed Ribeiro,
a Arte e a Memória se Encontram
Na Casa da Música, na Beira da Lagoa do Abaeté no bairro de Itapuã em Salvador, Bahia, encontrei Ed Ribeiro e Nil Lus. Era primeiro de abril. Dia de “Sarau de Itapuã”, evento calendarizado que acontece todas as segundas-feiras.
Desse encontro aconteceu o "encantamento" gerador dessa reportagem que passa pela Casa da Música para ouvir o som de Nil e leva você até o ateliê de Ed na zona rural do município de Catu. Um lugar onde a força da natureza presente é transmutada em obras de arte.
Foto by Kithi
Nil Lus tocando na Casa da música acompanhado por Fabricio Rios, Amadeus Alves, Chico Maia e Ronis.
Parte do show na Casa da Música
Parte do show na Casa da Música
Nos conta Ed Ribeiro que durante a premiação recebida por ele na instituição Artes-Ciências-Lettres de Paris, na França, em 2010, Nil Lus foi convidado para fazer uma música em homenagem ao artista plástico que chorou de emoção.
Momento único onde o som e a imagem celebram os Orixás e a irmandade nasce dos encontros casuais.
Nil canta "Olorum", para o amigo Ed na Casa da Música. Veja!
"Olorum" é uma oração em forma música. Uma composição feita por Nil Lus pedindo a Divindade a cura de dois amigos irmãos: Ed Ribeiro e Arlindo Cruz.
De passagem pela Bahia para receber o prêmio Berimbau de Ouro, Nil Lus, a convite de Amadeu Alves, chega na Casa da Música para homenagear D. Francisquinha, uma mulher que esteve a frente das tradições populares de Itapuã até o último dia de vida no planeta Terra. O Sarau do dia primeiro tinha esse objetivo.
Nil convida o amigo irmão para acompanhá-lo no show.
Tanto a história de vida de Nil quanto a de Ed é de muita determinação e fé.
Nil, mineiro de Belo horizonte, foi aos Estados Unidos da América pela primeira vez como um dos jogadores da seleção brasileira de handball, momento que recebeu, como parte do pagamento, o visto que autoriza a permanência por quatro anos no país.
Após retornar para o Brasil decidiu voltar para os Estados Unidos e seguir a carreira de músico.
Nas mãos o instrumento, na mente a certeza da qualidade de sua música, no bolso nenhum dinheiro e no coração a fé inabalável que vence fronteiras e ganha o mundo.
E como o mistério é parte da vida daqueles que tem fé, antes da viagem o pai de um amigo pediu a Nil para ajudá-lo com o seu filho. Ele estava muito doente e o desespero já tomava conta da família. Nil indicou e acompanhou um tratamento espiritual que levou a cura do amigo e a paz para todos.
Esse fato fez de Nil um novo filho para essa família. Antes de viajar, o pai do amigo curado ofereceu um presente: você vai ser recebido no exterior por uma pessoa que me tem consideração.
E assim foi. Quando chegou no aeroporto de Nova York estava lá uma pessoa a lhe esperar.
Nil foi levado a casa de show Via Brasil para oferecer a sua arte de tocar e cantar, mas não tinha vaga para a função. Por conta do seu porte físico, alto e forte, foi convidado a trabalhar como porteiro de um festival que iria acontecer justo naqueles dias.
Exerceu sua função com maestria, o que lhe rendeu um pouco mais de dólares e um lugar como músico na primeira oportunidade.
De lá para cá já se passaram 32 anos. Hoje Nil é cidadão do mundo.
Mesmo sendo colecionador de muitos prêmios e tendo cantado nos maiores festivais de música do planeta, Nil nos fala sobre Itapuã e sobre a Casa da Música como sendo um lugar ímpar no mundo.
Confira no vídeo abaixo o que ele diz.
Ed Ribeiro, o Artista Dos
Orixás
Nascido na mesma casa onde funciona o Ateliê Museu, em Catu, Ed Ribeiro teve no avô, um cidadão de vida simples do interior da Bahia, a sua maior referência.
Foi o avô quem disse: "eu cuido desse menino, ele é muito inteligente e não pode se perder."
E Ed fez valer.
Logo cedo se muda para Salvador, capital do estado, e monta uma empresa de serviços de encanador, na sequência inventou e inaugurou o Point do Acarajé, no bairro do Canela, em frente a Faculdade de Teatro. Com o sucesso do acarajé abre filiais em mais dois estados brasileiros.
Aos 52 anos, cansado da vida de comerciante, Ed começa a pintar e a expor no mesmo espaço onde vendia o acarajé. Enquanto seguia pintando pedia aos Orixás para que sua arte pudesse gerar o sustento econômico.
Durante mais ou menos um ano Ed pintava com pincéis e espátulas e as telas eram figurativas, retratando espaços da cidade, frutas, flores...
Acarajé é uma comida tradicional da Bahia. A massa é feita com uma espécie de feijão chamado feijão fradinho.
Foto by Kithi
Foto by Kithi
Obra da época que Ed pintava com pincéis e espátulas
As primeiras telas não foram vendidas, mas Ed continuou animado e com fé.
Foto by Kithi
Obra da época que Ed pintava com pincéis e espátulas
A NOVA TÉCNICA SURGE COMO POR ENCANTO
O amor pelo amigo Bizeco, residente em Itapuã, foi o caminho para a nova técnica que revolucionou a sua vida e lhe garantiu a notoriedade como artista plástico.
Bizeco era um preto velho, daqueles que parece um pai, cuja sabedoria de anos de vida acumulados nos encanta e aproxima! Era morador de Itapuã, faleceu.
Bizeco era muito próximo do artista. Era aquele tipo de amigo de todas as horas e todos os dias.
Em um dia de 2005 Ed, como sempre fazia, vai visitar Bizeco e no caminho decide que queria dar um presente ao amigo. E o presente era fazer uma pintura na parede da casa dele.
Era domingo, dia de lojas fechadas, uma dificuldade enorme para encontrar as tintas. Mas Ed persistiu. Ele queria de fato fazer a pintura e tinha que ser naquele momento. Acabou por conseguir o que necessitava para realizar o desejo: vários galões de tintas coloridas.
Bizeco agradece a intensão do presente e diz que para ele pintar a parede era necessário
prepará-la adequadamente para receber uma obra, pois estava muito suja.
A parede da casa de Bizeco nunca foi pintada por Ed.
Ele retorna para sua casa, na época situada no bairro do canela, com todas as tintas.
Com o impulso provocado pela vontade de pintar, Ed começa a derramar a tinta formando um animal sobre um conjunto de folhas de bananeira pintadas com pincel e espátula resultando na obra abaixo.
Foto: arquivo Ed Ribeiro
De posse dessa tela levou para o Point do Acarajé e expôs no meio das outras existentes.
A obra chamou a atenção de muita gente e Ed começa a pintar com a técnica criada por ele chamada "derramamento de tinta", sem pincéis e sem espátula.
Com essa nova forma de expressar a sua criatividade ele ganhou uma exposição no Hotel da Bahia onde quase todas as obras expostas foram vendidas.
Ed Ribeirou achou o seu caminho: tornou-se o pintor dos Orixás, eu diria mais de Ed Ribeiro, ele é o pintor do fluxo continuo dos Orixás: o movimento.
Foto arquivo Ed Ribeiro
Ed Ribeiro, o artista do movimento
Tudo em Ed Ribeiro nos leva ao movimento, mesmo a obra "O dinossauro", colocada na entrada do Ateliê Museu, feita da raiz de uma jaqueira e encravada em um morro de terra, sugere um estado de impulsão para o passo seguinte do animal.
Feitas as devidas considerações históricas e de processos de criação, a obra "O dinossauro", na contemporaneidade, preserva a mesma sugestão de movimento pensada e desenvolvida no período Helenístico.
Foto by Kithi
O Dinossauro , obra feita com raiz de jaqueira, uma raridade, tem 10 metros de comprimento
Com os gregos a escultura, mesmo estática, apresentam gestos que sintetizam a ideia de movimento.
Como diz Catarina Salvado, "O domínio sobre o movimento na escultura veio libertá-la acrescentando-lhe um novo sentido espacial".
Na tese de Mestrado intitulada "Movimento e Mecanismo na Escultura", Catarina Salvado traz o processo evolutivo do pensamento e a construção do conhecimento a cerca do "movimento" na física para a compreensão do movimento na arte. Com texto saboroso de ler, a autora, discorre sobre o assunto de forma clara e objetiva. Click no botão ao lado e acesse o PDF para aprofundar o tema. Vale ver.
As esculturas e os objetos do antiquário presentes no Museu Ateliê Ed Ribeiro, estão, na sua maioria, presos por fios de nylon, permitindo que a força da natureza, o vento, simbolizado pelo artista como Iansã, Deusa dos ventos, raios e tempestade na cosmovisão dos afrodescendentes brasileiros, provoque o movimento sem a intervenção humana.
De forma simples, o artista atinge o objetivo indicado por Catarina Salvado, que encontra no movimento um aparato "relevante para a conexão entre obra e espectador, desempenhando este um papel mais ativo e com a possibilidade de ser capaz de responder e de se relacionar com os estímulos da obra".
Sua técnica, sua pintura, suas esculturas, os objetos do antiquário e a próprio espaço de moradia sugere o entendimento do estado de mutabilidade da vida. Próprio daqueles que trazem na alma a consciência dos Orixás, representantes dos elementos da natureza, sua vitalidade e seu constante fluxo, seguindo o curso da existência.
A natureza, a memória e as tradições de seu povo permeia toda a criação do artista imprimindo força e singularidade as obras.
Foto by Kithi
A obra se movimenta ao sabor do vento, O Bufálo simboliza Iansã, cuja lenda explica a razão dos chifres estarem no altar da Orixá.
Detalhe da obra vista por trás, onde o chocalho e adereços também nos leva para o cotidiano passado, a memória do tempo em que o boi era utilizado na lida diária.
Conheça a lenda de Iansã que inspirou Ed Ribeiro a fazer essa obra. Você pode desfrutar no final da reportagem.
O ATELIÊ MUSEU ED RIBEIRO
O Ateliê Museu conta com cinco movimentos distintos e inseparáveis onde tudo pode ser visto: a moradia, o antiquário, o ateliê, as obras e a natureza.
O cuidado minucioso com tudo que compõe o ambiente faz do espaço um lugar especial para se visitar.
Rico de possibilidades criativas, é um estímulo a criação.
Da porteira de entrada ao guarda-roupas, quase tudo está em movimento, como a própria vida.
Laura, de 5 anos, conversa com Ed Ribeiro a cerca do guarda-roupas dele.
A moradia é integrada ao museu. Na cozinha as obras feitas de pincéis e espátula. Na entrada do quarto a proteção: Nossa Senhora de Aparecida, Exu, Iansã... No interior a cama, os primeiros quadros da técnica inovadora de derramamento de tinta e o guarda-roupas em movimento.
O especial desse espaço é o local de banho. Completamente integrado a natureza estão o chuveiro, a banheira e o balanço! Para conhecer este lugar só indo visitar.
Foto by Kithi
Detalhe da obra "Encantados" situado na entrada do quarto de Ed Ribeiro
O antiquário é obra de Ed Ribeiro com seu irmão, que iniciou a coleta das peças. Nesse espaço tem um pouco de tudo que chega as mãos. O objetivo é criar a memória dos tempos passados a partir dos objetos.
Tem rádios, Lps, ferros, máquinas fotográficas, balanças, vasos, baús, talheres, bancos, máquinas de costura, uma infinidade de objetos, dentre eles, algumas partes que compõe uma casa de farinha antiga, que Ed pretende construir futuramente.
Foto by Kithi e Edvaldo Passos
O ateliê onde as obras são pintadas e guardadas. A exposição das obras na área externa e interna do espaço e a natureza ao redor com árvores, bananeiras, cachorros, galinhas... estão todos em harmonia e dão significado a inspiração ao artista.
Vejam no vídeo abaixo a nossa visita ao Ateliê.
Nossa visita no Ateliê Museu Ed Ribeiro
Visite o Ateliê Museu Ed Ribeiro
Local: Fazenda Pedras, Catu - BA, 48110-000
Horário: é preciso agendar visita por Whats App (única forma de contato)
Telefone: +55 71 9 9957 54 39
Lenda de Iansã
Ogum foi um dia caçar na floresta. Ele ficou na espreita e viu um búfalo vindo em sua direção.
Ogum avaliou logo a distância que os separava e preparou-se para matar o animal com a sua espada. Mas viu o búfalo parar e, de repente, baixar a cabeça e despir-se de sua pele. Desta pele saiu uma linda mulher.
Era Iansã, vestida com elegância, coberta de belos panos, um turbante luxuoso amarrado à cabeça e ornada de colares e braceletes. Iansã enrolou sua pele e seus chifres, fez uma trouxa e escondeu num formigueiro. Partiu, em seguida, num passo leve, em direção ao mercado da cidade, sem desconfiar que Ogum tinha visto tudo.
Assim que Iansã partiu, Ogum apoderou-se da trouxa, foi para casa, guardou-a no celeiro de milho e seguiu, também, para o mercado. Lá, ele encontrou a bela mulher e cortejou-a.
Iansã era bela, muito bela, era a mais bela mulher do mundo. Sua beleza era tal que se um homem a visse, logo a desejaria. Ogum foi subjugado e pediu-a em casamento. Iansã apenas sorriu e recusou sem apelo. Ogum insistiu e disse-lhe que a esperaria. Ele não duvidava de que ela aceitasse sua proposta. Iansã voltou à floresta e não encontrou seu chifre nem sua pele.
“Ah! Que contrariedade! Que teria se passado? Que fazer?”
Iansã voltou ao mercado, já vazio, e viu Ogum que a esperava. Ela perguntou-lhe o que ele havia feito daquilo que ela deixara no formigueiro. Ogum fingiu inocência e declarou que nada tinha a ver, nem com o formigueiro nem com o que estava nele. Iansã não se deixou enganar e disse-lhe:
“Eu sei que você escondeu minha pele e meu chifre. Eu sei que você se negará a me revelar o esconderijo. Ogum, vou me casar com você e viver em sua casa. Mas, existem certas regras de conduta para comigo. Estas regras devem ser respeitadas, também, pelas pessoas da sua casa. Ninguém poderá me dizer: Você é um animal. Ninguém poderá utilizar cascas de dendê para fazer fogo. Ninguém poderá rolar um pilão pelo chão da casa”.
Ogum respondeu que havia compreendido e levou Iansã. Chegando em casa, Ogum reuniu suas outras mulheres e (…) Ficara claro para todos que ninguém deveria discutir com Iansã, nem insultá-Ia. A vida organizou-se. Ogum saía para caçar ou cultivar o campo. (…) Mas as mulheres viviam enciumadas da beleza de Iansã.
Cada vez mais enciumadas e hostis, elas decidiram desvendar o mistério da origem de Iansã. Uma delas conseguiu embriagar Ogum com vinho de palma. Ogum não pôde mais controlar suas palavras e revelou o segredo. Contou que Iansã era, na realidade, um animal; (…) Depois disso, logo que Ogum saía para o campo, as mulheres insultavam Iansã:
“Você é um animal. Você é um animal.”
Elas cantavam enquanto faziam os trabalhos da casa: “Coma e beba, pode exibir-se, mas sua pele está no celeiro de milho.”
Um dia, todas as mulheres saíram para o mercado. Iansã aproveitou-se e correu para o celeiro. Abriu a porta e, bem no fundo, sob grandes espigas de milho, encontrou sua pele e seus chifres. Ela os vestiu novamente e se sacudiu com energia. Cada parte do seu corpo retomou exatamente seu lugar dentro da pele. Logo que as mulheres chegaram do mercado, ela saiu bufando. Foi um tremendo massacre, pelo qual passaram todas. (…) Iansã poupou seus filhos que a seguiam chorando e dizendo:
“Nossa mãe, nossa mãe! É você mesma? Nossa mãe, nossa mãe. Que você vai fazer? Nossa mãe, nossa mãe. Que será de nós?”
O búfalo os consolou, roçando seu corpo carinhosamente no deles e dizendo-lhes: “Eu vou voltar para a floresta; lá não é um bom lugar para vocês. Mas, vou lhes deixar uma lembrança.”
Retirou seus chifres, entregou-lhes e continuou:
“Quando qualquer perigo lhes ameaçar, quando vocês precisarem dos meus conselhos, esfreguem estes chifres um no outro. Em qualquer lugar que vocês estiverem, em qualquer lugar que eu estiver, escutarei suas queixas e virei socorrê-los.”
Eis porque dois chifres de búfalo estão sempre no altar de Iansã.
Fonte: Lendas Africanas dos Orixás, de Pierre Verger Fatumbi retirado do site Raizes Espirituais - link no botão abaixo:
Ed Ribeiro e Kithi - Gratidão a vida!