TERNO DAS ALMAS
Silêncio. As pessoas estão em oração.
Silêncio. Elas oram para as almas angustiadas acessarem a luz Divina.
Silêncio. O Terno das Almas está em ação.
Silêncio. O terno não é um entretenimento, é um lugar de muita força e conexão.
Silêncio. Elas oram pelas almas do mundo.
Texto, vídeos e fotos: Kithi 2024 mês 3
Ter acompanhado durante uma noite o Terno das Almas em Igatu, lugarejo da Chapada Diamantina, na Bahia, foi uma das experiências espirituais de maior força que já vivi. Enrolada em lençóis brancos as pessoas se dirigem em silêncio para as estações, localidades onde param para orar pelas almas desencarnadas, principalmente aquelas que sofreram uma mudança abrupta de estágios de vida, aquelas que sofreram acidentes diversos ou que partiram repentinamente.
Cheguei na casa de D. Danúsia, uma das Mestras do Terno das Almas, mais ou menos às 17h da segunda-feira, dia 18 de março de 2024. Era dia de oração. Elas realizam o ritual todas as segundas, quartas e sextas, durante a quaresma. Exceto na última semana que antecede a Páscoa, que elas oram todos os dias, encerrando na sexta-feira santa, pedindo vida para no próximo ano continuar a tarefa de orar pelas almas aflitas.
Terno de crianças e adolescentes conduzido por D. Danúsia
D. Danúsia e Kithi conversando sobre o sentimento dela com o terno
Depois da entrevista, perguntei a D. Danúsia se podia acompanhar, filmar e fotografar. Ela permitiu, mas logo falou: “traga seu lençol branco para cobrir sua cabeça e corpo”. E eu perguntei: “porque é necessário cobrir o corpo com um lençol branco?”. E ela respondeu: “vamos despertar as almas, temos que nos proteger e no final sacudir o lençol 3 vezes para elas seguirem seus caminhos”. Eu coloquei o lençol e orei também.
É como se estivessem acordando as almas que estão em todos os cantos do mundo. As diversas estações, permite uma proximidade maior para almas que estão agrupadas nas diversas direções. Dona Danúsia explica que são 3 estações (3 paradas) por noite. As estações não podem se repetir num mesmo ano. Em todas as noites a última estação é na porta da Igreja. Sentadas na escadaria, as pessoas oram de frente para o cemitério.
D. Danúsia é uma daquelas pessoas sábias de uma sabedoria de vida vivida, assim como D. Toninha, a Mestra do outro grupo que só consegui encontrar durante a oração na frente da igreja, e depois fui a sua casa para conhecer o seu fazer e entrevistá-la. Ambas trazem em si a potência de amar a tradição que zela pelo bem estar das almas desencarnadas. Elas oram pelos seus, alguns nomes são citados, mas também por todas as almas do mundo.
D. Toninha falando sobre a construção do Terno de 2.000 para cá.
Auto retrato Kithi
D. Danúsia fala como é distribuída as estações durante a semana
As estações podem estar longe ou perto da área construída. Ao chegar ao local escolhido, todas as pessoas se sentam e a matraca desperta as almas desencarnadas para ouvirem os benditos, orações em forma de cânticos que são entoados em prol de levar a luz Divina para as almas angustiadas.
Os benditos tem a métrica dos cânticos tradicionais do povo preto, como na capoeira, e por ser repetido por 7 vezes é fácil acompanhar. Em cada estação são cantados 3 benditos.
D. Danúsia mostra a matraca e canta 2 Benditos
Rita, uma das integrantes, fala sobre o terno das Almas
Dona toninha fala da importância do Terno das Almas e canta no final
Terno de D. Danúsia com crianças e jovens
Terno de Dona Toninha com mulheres adultas
Orar para as almas angustiadas durante a quaresma é a tradição do povo de alguns municípios da Chapada Diamantina. Contando com dois grupos, a tradição do Terno das Almas em Igatu, na Bahia, é um ritual ancestral. É desconhecida a data exata do início, mas a matraca, único instrumento musical utilizado durante o ritual, é uma herança secular. Passou de mão em mão até chegar a D. Danúsia, uma das puxadoras do movimento na atualidade.
Antigamente existiam o Terno de D. Dudu e o Terno de D. Isabel. Após o falecimento das duas, o Terno das Almas ficou esquecido, foi quando Marcos Zecaríades, artista visual que escolheu Igatu como lugar de moradia, nas pesquisas dele, tomou ciência da tradição e começou o movimento, junto a população, de re-conexão com a memória dos antepassados.
Ele convidou as mulheres para reconstruir o terno. Algumas delas ainda lembravam de alguns dos cânticos que ouviam quando criança, mas foi Seu Euclides quem ajudou a lembrar outra parte dos benditos. Além do grupo pesquisar também em Andaraí, onde a terno se faz presente. A tradição foi reestabelecida no ano de 2.000, sendo um só grupo, onde compartilhavam D. Danúsia e D. Toninha.
Como a cultura é dinâmica e é construída a partir do fazer diário, aconteceu um movimento importantíssimo: a divisão do grupo inicial em 2 grupos. Dona Danúsia entendia que o terno tinha que ter crianças e adolescentes participando. Dona Toninha quis manter a tradição antiga de somente ter mulheres adultas. Ambos estão traçando um caminho de Amor as almas angustiadas. Enquanto D. Toninha mantém o Terno das Almas mais próximo do que era feito pelos ancestrais, D. Danúsia cuida para que a história do desaparecimento não se repita: ela prepara a continuidade, através da presença de jovens e crianças, para que no futuro o terno permaneça. Abrindo espaço também para os homens entoarem seus cantos de fé e amor ao próximo.
Como toda mudança, em qualquer parte do mundo, causa estranhamento e, as vezes, rejeição, mas se pudermos entender a vida como um processo de fluxo e mudança, podemos entender que cada pessoa exerce um papel importante dentro da sua própria cultura. Cada uma das pessoas que são Mestres ou Mestras recebem orientação da própria espiritualidade para realizar determinados movimentos e todos os movimentos são válidos, pelo simples fato de existir amor pelo que se faz.
Eu presenciei o respeito que as crianças e adolescentes sentem e tem pela tradição. Eu os acompanhei e eles estão imersos na ação. Mas também presenciei a força e a beleza das mulheres adultas ao realizar o ritual em frente a igreja. É diferente e faz arrepiar de verdade. Ambos cumprem o papel que acreditam: minimizar a angustia das almas desencarnadas.
Que a harmonia seja o caminho para que a tradição siga seus caminhos possíveis e fortaleça a presença e a sabedoria de nossos ancestrais e guias espirituais.
Só agradecimento cabe no meu coração por essa oportunidade de viver algo tão poderoso.
Salve as Mestras dos Ternos das Almas de Igatu: Dona Danúsia e Dona Toninha.