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Arte serve para que?

 Kithi 
 

26 de março 2019

Fotos e vídeos:
Kithi e Edvaldo Passos

Nesta reportagem apresentamos os projetos da Burrinha, realizado pelo Coletivo do Bairro do Diamante; e do Bate Latas, desenvolvido como extensão da disciplina de arte, em Mata de São João. No decorrer do processo nos deparamos com uma questão das pessoas entrevistadas: arte serve para que? E passamos a discorrer, de forma opinativa, sobre o tema proposto pela população.

OS PROJETOS

Atrás do cortejo das baianas lá vem a Burrinha, toda enfeitada, com olhar doce desfilando alegria.

 

A festa do Bonfim é o momento em que as expressões artísticas, principalmente musical, ganham visibilidade em Mata de São João.

 

E por conta do Projeto da Burrinha, realizado pelo Coletivo Cultural do Bairro do Diamante, encontramos o Projeto Bate Latas, realizado pelo Professor André Braga, como extensão da disciplina de artes, na Escola Municipal Valdete Seixas de Oliveira, localizada no distrito de Amado Bahia.

A professora de história Julieta Andrade, cidadã matense com 30 anos de profissão, junto com Marcos Borel, trouxeram a Burrinha para ser "a mascote" do projeto Bate Latas. 

 

E nem bem chegou já encantou a todos... até nós da Revista Assum Preto.

Assista ao vídeo e veja como a Burrinha chegou, quem arrumou e quem faz ela viver...

 

Os projetos de extensão em arte, dessa escola, são propostas de ação pensadas e realizadas pelos professores com a intenção de proporcionar aos estudantes uma vivência com a própria cultura.

 

Atentos as demandas apresentadas pelos alunos e acreditando no poder da arte como elemento que articula a vida emocional das pessoas, expandindo os sentidos e proporcionando a experiência interior, impossível de ser descrita por palavras, os projetos tem a intenção de orientar o olhar do educando para a compreensão da própria cultura, e de si mesmo enquanto possíveis protagonistas de suas tradições. 

O projeto Bate Latas teve inicio há 14 anos e partiu da observação direta do professor sobre o comportamento dos alunos que viviam a fazer batucada nas salas.

 

Inspirado nos movimentos percussivos da Bahia, o professor de arte André Braga deu início ao projeto utilizando sucatas como insumo para produzir os instrumentos.

 

Como nos conta Maurício, integrante do projeto, no áudio abaixo.

Maurício fala do início do projeto -
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Com o espírito musical dos alunos e a vontade de realizar do professor, o projeto começa a fluir.

 

Os instrumentos feitos de latas foram aprimorados com o decorrer do tempo e ganhou sonoridade de instrumentos tradicionais. 

Prof. Andre Braga fala do início do projeto

O projeto abriu inscrição para a comunidade matense por ter ex-alunos interessados em permanecer no grupo percussivo.

Porém, como nem tudo são somente flores, para sustentar o Bate Latas, o professor André precisa ter peito de remador, e remador que nada em qualquer tipo de maré.

A falta de espaço adequado para ensaiar e criar os instrumentos é uma das dificuldades enfrentada pelo grupo.

 

Atualmente é disponibilizada a quadra de esportes para a realização da oficina. Local onde a acústica atrapalha a audição dos instrumentos.

 

Antigamente era possível utilizar o pátio interno da escola, onde o som é propagado com mais nitidez, condição imprescindível ao ensino da música.

Hoje o ensaio é realizado na rua, na calçada da escola.

A confecção dos instrumentos é feita pelo professor, no seu tempo livre, junto com um amigo serralheiro.

No vídeo abaixo André fala  sobre os itens necessários ao bom funcionamento do projeto e ampliação do número de participantes

A IMPORTÂNCIA DE PROJETOS COMO O BATE LATAS

 

Mas, para que serve mesmo esse projeto? Só escuto barulho.

 

Essa foi a resposta que ouvi de uma senhora quando perguntei se conhecia o Bate Latas e o que achava do projeto.

 

A partir da fala dela resolvi perguntar, aleatoriamente, pela cidade de Mata de São João, o que as pessoas achavam do Bate Latas e da Burrinha como projetos realizados na escola, guardando o anonimato das fontes.  

 

Ouvi vinte pessoas com idade entre 25 e 70 anos. Das vinte pessoas entrevistadas, quinze não conseguiam compreender a importância da arte para a educação do ser humano.

Então resolvi, como arte educadora formada pela Universidade Católica do Salvador e artista plástica, colocar aqui a minha opinião sobre o tema.

Vou começar pelos benefícios mais simples e aparente. Aquilo que é visível sem precisar esforço de entendimento.

Uma criança ou adolescente está numa fase da vida em que o impulso para fazer, para a ação é muito maior do que para a contemplação.

É necessário que seja assim para a própria manutenção da espécie. Eles são ativos. Estão sempre em movimento e precisando criar, inventar, descobrir e ultrapassar os próprios limites.

É essa curiosidade e disponibilidade para ir além do que está posto pela sociedade que impulsiona as novas descobertas mundiais em todas as áreas e, consequentemente, a nossa evolução enquanto seres humanos.

Um dos benefícios da participação da criança ou adolescente em oficinas de arte, seja ela o projeto Bate Latas, pintura, teatro, dança, burrinha ou outros... é a ocupação.

Oficina de arte é sinônimo de ocupação com acompanhamento especializado.

Mente ocupada, é mente sadia.

Muitos adultos sentem a necessidade de colaborar para o crescimento da sua espécie através da transmissão do conhecimento. Aquilo que aprendeu durante a sua jornada. Esses são os mestres necessários para a compreensão e a construção do saber.

Geralmente, os adultos a frente dos projetos artísticos-culturais estão imbuídos em promover uma qualidade de vida “mental” através do exercício da criatividade.

Aprender a pintar, a interpretar, a dançar, a tocar um instrumento musical, a cantar... exige disciplina, continuidade e persistência. A aprendizagem desses fatores essenciais nas oficinas de arte fazem diferença na vida da pessoa, independente do campo de atuação que resolva trabalhar ou trabalhe.

Fazer alguma atividade artística não significa tornar-se artista. Esse caminho é só mais uma possibilidade de expressão da vida.

Mas, ainda há um outro movimento que a arte possibilita: a sanidade mental. 

Na década de 40 do século passado, uma filósofa norte-americana, chamada Sussane Langer, resolveu compreender o valor da arte e da criação para a consciência humana.   

Ela traçou um estudo sistemático e chegou a conclusão que além da linguagem científica e verbal, nós temos um outro tipo de linguagem que está presente na arte, chamada linguagem presentacional.

A linguagem presentacional corresponde à arte e nela está contida as representações simbólicas dos atributos emocionais, materiais, espirituais e intelectuais.

Na década de 90 o neurocientista Howard Gardner lança um olhar sobre o texto de Sussane e dedica um capítulo do seu livro Arte, Mente e Cérebro a autora. 

E é através da linguagem presentacional, estejamos criando ou consumindo arte, que conseguimos articular a nossa vida emocional.

Ela nos fala da abertura simbólica contida na arte. Expressões constituídas a partir daquilo que é observado, mas também emocionalmente sentido pelo artista.

 

A obra de arte apresenta símbolos abertos e passíveis de uma leitura ampla de sentidos e significados. Subjetivo demais para a linguagem do discurso.

 

Quando falamos ou escrevemos utilizamos a palavra, esse conjunto de letras possui um significado claro, uma definição. Ao falar ou escrever "casa", as pessoas que aprenderam o português saberão exatamente a que se refere a palavra. Não há dúvida. Casa é casa. Ela pode variar de tamanho, de estilo, de local, mas continua sendo uma casa.

Na arte não há essa definição, o que está expresso é amplo, aberto e  por isso é possível abrigar várias possibilidades de interpretação.

 

O significado da obra está diretamente ligado ao que aprendemos e sentimos, logo, cada um tem a sua compreensão e leitura da obra, quase sempre, difícil de ser relatada.

 

A obra de arte permanece sempre em movimento, mesmo que aparentemente estática.

O que sentimos quando ouvimos uma música, vemos um quadro, uma escultura ou assistimos um espetáculo de dança?

 

Lembremos que as imagens das igrejas também são esculturas e mais, cada espaço tem seus próprios símbolos que representam algo ou não para as pessoas que assistem a obra.

 

Tudo depende da vivência e experiência de cada um.

 

Uma peça teatral que fala da morte e ressureição de Jesus é também uma manifestação artística. Uma interpretação da história.

 

Mas aquela peça ou obra presente na galeria também é história e representa um estado de diálogo entre o artista e seu tempo.

 

Assim, a leitura que fazemos de cada obra experimentada é nossa, é única e é intransferível.

 

Nós interagimos com a obra a partir de um lugar inatingível pelo outro que nos observa. Um lugar “sem texto”, sem formalidades ou regras.

 

A obra retrata um pedaço de nós mesmos. Compreendemos a obra de arte a partir dos nossos sentimentos, valores, crenças, vivências... e por mais que queiramos ela não pode ser “relatada na sua inteireza” através de outros símbolos, como a escrita ou a verbalização da escrita: a fala.

Mas o diálogo entre nós e a obra existe.

 

A obra é completa e para cada um de nós ela se apresenta de uma forma.

E tem mais, a mesma obra pode refletir diferentes movimentos para um mesmo indivíduo. Tudo depende do lugar ocupado durante o percurso no tempo.

 

Vou contar-lhes uma história minha.

 

No final da década de 80 eu conheci o quadro “Os Girassóis” de  Van Gogh através dos livros. Eu detestava essa obra com todas as minhas forças. Mesmo que os professores e o mundo ressaltassem a sua importância. Para mim era um vaso de flores e ponto.

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"Para superar esse elevado tom de amarelo a que cheguei neste verão, tive de superar limites". (Van Gogh diz em carta ao irmão Theo)

Van Gogh fez 5 obras com o mesmo tema. Elas estão espalhadas por vários museus em diversas cidades do mundo.

Foto retirada do site: 
https://www.nationalgallery.org.uk

Passou o tempo e fui morar na Inglaterra na década de 90.

 

Em visita a Galeria Nacional (The National Gallery), em Londres, estava lá o quadro de Van Gogh.

 

Fiquei paralisada de imediato. Era algo indescritivelmente belo e de um colorido inexplicável. As cores brilhavam. Era vivo demais para ser apenas tintas sobre tela.

 

Voltei lá muitas e muitas vezes para ficar sentada em frente aos Girassóis e compreendi que naquela terra, cinza e sombria de nuvens carregadas para chover, o quadro me lembrava a intensidade e o colorido do meu lugar de origem, o Brasil.

 

Eu estava emocionalmente conectada com a obra. O quadro se tornou o meu sol. Era muito difícil, para mim, acostumada com a intensidade da luz do nordeste brasileiro, viver aquela realidade cinza de Londres.

 

Pela quantidade das visitas e dos diálogos silenciosos nos tornamos um inteiro, eu e a obra.

 

Naquele momento eu não tinha essa compreensão de hoje. Eu apenas queria estar ali pelo menos uma vez ao mês.

 

Imagine que naquele momento da minha vida eu estava distante do Brasil por mais de um ano.

 

Hoje com certeza, com as diversas experiências imprimidas pelo tempo e a convivência com nosso sol, o efeito do quadro sobre mim, de imediato, provavelmente não será o mesmo. Eu mudei e o meu olhar para obra também será transformado.

É possível compreender o quão importante foi essa obra para a manutenção do meu equilíbrio emocional? Mesmo que não compreendesse? 

Saindo do exemplo...

 

 

Que tipo de diálogo temos com a arte? Será que conseguimos decifrar em palavras o que estamos sentindo?

 

Lá dentro há uma fala pulsando em forma de sintonia que pode expressar vários sentimentos como repulsa, aproximação, encantamento, raiva, compaixão, sabedoria, acolhimento... mas não quer dizer que conseguimos "racionalizar"o diálogo subjetivo em símbolos objetivos da linguagem discursiva - texto ou fala - somente por ter identificado um "sentimento".

 

Em contato com a arte existe um tipo de diálogo cujo conteúdo "inexplicável" nos ajuda organizar o nosso campo emocional. 

E o que será que acontece quando aprendemos e nos permitimos nos expressar através da arte?

 

Imagine a quantidade de tensão e de pensamentos que circulam na nossa mente junto com os sentimentos. Tudo ali aprisionado e já querendo transbordar, sair, evacuar da nossa cabeça. Procuramos palavras para explicar esse emaranhado e não achamos. Imaginou? Como nos libertar desse movimento?

 

Existem várias possibilidades: a meditação, o contato com a natureza, o esporte, a arte... 

 

Sendo assim, podemos dizer, para o caso específico do projeto Bate Latas, que ao estar aprendendo a tocar um instrumento musical, as crianças/adolescentes estão próximas da oportunidade de se apropriar de uma nova forma de expressão do seu mundo interior, além de aprender disciplina, técnica musical, perseverança... como falei antes.

 

E de que forma isso é importante?

 

Imagine que você esteja sentindo tristeza, depressão, revolta, medo ou outra sensação que incomode, mesmo a alegria quando eufórica... mas você não consegue de forma alguma falar sobre o seu estado emocional, e mesmo que fale, o outro ouvinte não consegue entender a sua fala perfeitamente, nem ajudá-lo com suas necessidades psicológicas.

 

Mesmo incompreensível, a necessidade de falar existe. O emaranhado está ali pulsando, estimulando e impulsionando seu cérebro racional a fazer algo para se livrar do "incômodo" de alguma forma.

 

A arte nos ajuda a liberar esse estado não dito verbalmente, provocando um equilíbrio interno. Uma manutenção do emocional. Esse movimento pode acontecer "fazendo" arte ou "assistindo" arte, como eu e Os Girassóis.

É por isto que a arte liberta. E é por isto que é tão importante o ensino da arte nas escolas e em qualquer ambiente que seja necessário restituir o equilíbrio emocional das pessoas.

Observem que a arte é presente em todas as instituições sérias para a educação e/ou re-educação dos seres humanos. Vemos a forte presença da arte na APAE, no centros de tratamento de transtornos psicológicos, nas casas de atendimento a idoso, em centros de saúde...

O ensino-aprendizagem da arte, da maneira que é executada pelo Projeto Bate Latas e da Burrinha, é uma das formas mais saudáveis para a manutenção do equilíbrio emocional dos jovens. 

 

Além de tudo, há nestes projetos uma conectividade com a memória ancestral, com a realidade vivida pelos participantes e com o fazer cultural da própria região,  cooperando também para o fortalecimento da autoestima, item necessário a manutenção da vida de forma digna.

“As estruturas tonais a que chamamos de música tem uma íntima semelhança com os sentimentos humanos”  Sussane Langer

A BURRINHA

 

 A burrinha é o nome dado a uma brincadeira baiana que se assemelha aos ternos de reis, cuja diferença é a presença da burrinha e a presença das chulas, canto de labor encontrado no recôncavo baiano.

Em Mata de São João a burrinha dança ao lado do boi de montaria.

Adalto, o dançarino, fala do boi de montaria

A indumentária é composta por uma “roupa” colorida no formato do animal, com cabeça e tudo, que ao ser vestida imita uma pessoa montada no burro ou jumento, animal comumente utilizado na primeira metade do século XIX para transportar mercadorias no nordeste brasileiro.

 

De tão importante para o desenvolvimento da região, o jumento, ganhou uma canção de Luiz Gonzaga, "O jumento é nosso irmão".

 

“É verdade, meu Senhor

Essa estória do sertão

Padre Vieira falou

Que o jumento é nosso irmão

E na fuga para o Egito

Quando o julgo anunciou

 O jegue foi o transporte

Que levou Nosso Senhor

Vosmicê fique sabendo

Que o jumento tem valor

Agora, meu patriota

Em nome do meu sertão

Acompanhe o seu vigário

Nessa terna gratidão

 Receba nossa homenagem

Ao Jumento, nosso irmão

 

Introduzida na Festa do Bonfim deste ano, a burrinha foi trazida pelos professores para a escola com o intuito de apresentar e construir com os alunos a própria história cultural do seu povo.

 

O pandeiro e a viola, em geral, são os instrumentos que junto ao canto colocam a burrinha para dançar. No caso de Mata de São João, o Bate Latas foi convidado por Marcos Borel para fazer a trilha sonora. 

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