top of page

NOVEMBRO NEGRO em Itaparica

I Encontro de Povos de Terreiro da Ilha de Itaparica

Por Kithi, 20 de novembro de 2023

Distante dos discurso próprios para palanques políticos, nesse espaço de falas diversas havia mais que tudo, Amor e Sabedoria. Sentimentos que não precisam de letramento, mas são deveras importantes para manter o equilíbrio necessário a força que chega com o poder proveniente da união dos diversos saberes: filosóficos, artísticos e científicos.

Aqui, a sobrevivência de si é também a sobrevivência da outra pessoa que tem na tradição afro-indígena a memória dos ancestrais. Memórias que trazem nas ações diárias a ligação direta com o ambiente natural, onde tudo é sagrado: a terra, os ventos, as águas doce e do mar, o fogo, a mata, os minerais, os animais. A palavra chave desse encontro é união.

Ogan Ermeval da Hora - Presidente do Conselho de Cultura 

O ser humano, o ambiente natural, as políticas públicas, a educação, a ponte e o CNPJ. Como esses pontos "se encaixam ou se desencaixam" dentro do caminho para a autossustentabilidade das casas de santo, que passa também pela sustentabilidade do indivíduo, participante dos rituais necessários a manutenção dos saberes ancestrais, foram o norte do diálogo. Diálogo sim. Nesse lugar não se abriu brecha para debates ou discursões. Era um ambiente propício a análise das falas em direção a uma unidade do pensar para a execução das ações que virão: o fortalecimento e a união do povo afro-indígena, a 5ª caminhada do povo de Axé, o registro das casas de santo, o levantamento das necessidades de cada espaço, o sustento das pessoas que precisam se dedicar a manutenção da cultura tradicional, a chegada da ponte, a necessidade de escolas com currículo preto, etc.

O encontro aconteceu na “Casa de Cultura e Ética Mirante do Solar”, um espaço construído pelo pesquisador e Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, Pasqualino Magnavita, para realização de eventos culturais na cidade de Itaparica. 

Balbino de Paula - Alapini, sacerdote máximo do culto de Egungun, do Ilê Agboulá

Miguel Roque Filho, Sobaloju Olukotun do Terreiro Tuntum Olukotun

“A gente gosta de ver nosso povo junto. Quando a gente fica junto é aquela energia positiva, aquela esperança que renasce, aquela fé dobrada na ancestralidade, é uma coisa inexplicável  
Miguel Roque Filho, Sobaloju Olukotun do Terreiro Tuntum Olukotun

Janesson Gonçalves Diretor de Turismo - Prefeitura de Itaparica

A potência do I Encontro de Povos de Terreiro da Ilha de Itaparica, na Bahia, me fez parar, refletir e querer escrever. Deixar registrado esse momento sagrado.

 

As falas chegaram a mim como o início de uma profunda mudança no aspecto da própria autoimagem e das atitudes necessárias ao mundo contemporâneo. Intuitivamente, nascia em mim, como um feixe de luz que invade a sala escura e ilumina tudo, um vislumbre de emancipação social do sistema de opressão, sem dúvida reflexo dos movimentos que vem sucessivamente acontecendo, mas foi aqui na Ilha que tive a impressão da clareza do que é e do que pode vir a ser.

Toinha de Oxossi, com todo o seu amor e "riso casa" convida a todos para confiar nos Orixás.

Cacilda Santos de Souza chama atenção para a presença e a importância da Umbanda  para o fortalecimento de todos os povos de Santo.

Mametu Cafurengá fala da crença que ela tem no pontencial do Povo Preto

“Não é o saber pelo saber. Assim, eu sei e eu reproduzo. Mas, o saber poder, ou seja,(...)saber é poder e poder é política. (...) É preciso entender a vida nessas relações de força. O que está ocorrendo? Não é somente você resistir. (...) A resistência tem que ser uma resistência criativa, (...) mas uma criatividade ética no sentido que favoreça uma emancipação social de um sistema de opressão”
Depoimento do Prof. Dr. Pasqualino Magnavita  para as comemorações do aniversário de 70 anos da Ufba, em 2016.

Tudo começa pelo canto entoado por Gleison Rocha acompanhado pelos tambores em reverência ao Senhor do Caminho. Os atabaques Rum, Rumpi e Lê são tocados com maestria e nos conecta com a energia ancestral, favorecendo a abertura do inconsciente para o consciente receber os ensinamentos que nos oferece discernimento para a escolha do caminho a ser seguido. O Padê de Exu é realizado. Outros cantos dão sequência ao início do evento.

Depois do Padê os cantos seguiram uma trajetória cronológica: primeiro se reverenciou os povos originários cantando para os Caboclos com a voz da Mametu Cafurengá do Terreiro do Campo Bantu-Indígena Caxuté, seguindo com o canto de boas vindas entoado por Balbino de Paula, O Alapini, sacerdote máximo do culto de Egungun, do Ilê Agboulá, sequenciado pelo cântico para Ogum. Esse momento dos cânticos foi construído durante o evento quando as pessoas se revesavam espontaneamente.

Mametu Cafurengá

Canto para os Caboclos

Alapini Balbino de Paula

Canto de Boas Vindas

A abertura das falas chegou com a imponente interpretação da poesia de própria autoria de Moisés dos Palmares, o Mestre de Cerimônia que conduziu o evento.

“Deixe- me apresentar

Vim do lado de lá

atravessando as águas de Olorum

embalado nos braços de Yemanjá

Sou da terra dos ancestrais

daquele povo que segue em frente

sem deixar de olhar pra traz

e dignificar a nossa gente

Sou do pé no chão

Sou do remédio de folha

Sou neto de Seu Tião

Aquele que entendeu

que ser negro é sorte

e não escolha

Sou da terra do Mar Grande

Sou da aldeia do Cacique

Sou menino cantante

Sou do silêncio o repique

Meu lugar abriu caminhos

assim como fez o meu povo

Que no apagar dos seus rastros

fizeram Palmares de novo

E é por isso que eu cultuo Exu

Agô que hoje é sábado.

Mas foi na força de uma encruzilhada

que eu entendi que galo sozinho

não se tece uma manhã inteira

Sou da terra da ponte

essa que pretende me ligar ao tal desenvolvimento

mas que a ordem é colocar na minha fonte de saber,

concreto e cimento

Sou da Terra que promove resistência,

mas que infelizmente a nossa capital

não enxerga como competência.

Sou cria de mulheres

que amam esse chão.

Mulheres dos raios

das águas

das matas

Mulheres de grande coração

São Ritas, Marias, Aurindas

Anas, Elianas que não cansam de lutar

mostrando a força e o valor

que é amar este lugar.

Eu sou de cá

e por isso vim aqui dar esse recado

dizer para o Governo do Estado

pegue a visão

que capitanias hereditárias não cabe mais

Se a Ilha de Itaparica tem dono

Ela sou eu, vocês e os nossos ancestrais”

Moisés dos Palmares Poesia

Tanto na poesia quanto na fala que inicia o evento, Moisés dos Palmares, traz os saberes do seu povo como referências a serem contempladas pela política institucionalizada, e ele vai mais além, traz o “Bem Viver” do povo preto como objetivo a ser conquistado. O Bem Viver aqui é uma chamada para se pensar os modos de vida das comunidades tradicionais - dos quilombos - como forma de caminho político a ser trilhado. Um querer pautado no pensamento de se constituir uma sociedade sustentável vivendo em harmonia com a natureza, tão necessária as tradições de matriz afro-indígenas e a vida no Planeta.

“Sem folha
não tem sonho
Sem folha
não tem vida
Sem folha
não tem nada
Quem é você
e o que faz por aqui
Eu guardo a luz das estrelas
A alma de cada folha
Sou Aroni
Cosi euê
Cosi orixá
Euê ô
Euê ô orixá

 Ildásio Tavares / Gerônimo

Fala de Moisés dos Palmares na abertura do l Encontro de Povos de Terreiro da Ilha de Itaparica  

Canto de Umbanda - Cacilda Santos de Souza

Indigenas dos Andes

Bem Viver

Transcendendo as comunidades indígenas e pensando num modelo político a ser considerado, podemos dizer que o Bem Viver chega para nós, através dos pesquisadores, como reflexão para uma possibilidade de caminho político a se ter como referência, quiçá ser adotado. Baseado nas práticas que tem a cosmovisão dos povos indígenas da América Latina, o Bem Viver é um desafio a ser conquistado como alternativa ao sistema de produção e consumo dominante. A busca de um caminho de equilíbrio e comunhão com o Planeta Terra , onde tudo é importante: o ar, a água, o fogo, a terra, a flora, os animais, os minerais, o sol, as estrelas, a lua, o ser humano...  Uma forma de vida que integra o todo, onde tudo está interligado.

O “Bem Viver” existe há milhares de anos nas regiões dos Andes e da Amazônia, resistindo ao modelo de sociedade dominante. A prática do Bem Viver traz na sua essência uma relação direta entre sociedade e natureza, sugerindo reflexão para uma proposta alternativa de desenvolvimento, onde a qualidade de vida está relacionada com a espiritualidade, com os modos de vida, com a forma de consumo, com a relação com a natureza, com outros saberes, com a política e com a ética. A qualidade do viver está diretamente ligada a existência do Planeta Terra, a Pachamama.

Aquilo que entendemos, hoje, como “Bem Viver” é resultado das lutas do movimento indígena organizado por terra e por reconhecimento das suas nacionalidades nos territórios andino e amazônico. Forma de viver que unida as regras internacionais para o desenvolvimento sustentável passa a ser difundida. 

Nesse milênio o Bem Viver entrou para a política institucionalizada de dois países: a Bolívia e o Equador.  

A mesa chama para ação

 O I Encontro do Povos de Terreiro da Ilha de Itaparica juntou lideranças para dialogar e contruir ações coletivas com a intenção de fortalecer e avançar com temas importantes para a manutenção das tradições afro-indígenas. Todas as falas contemplam pontos comuns das comunidades tradicionais do povo preto, exceto as mudanças que chegarão com a construção da ponte Salvador-Itaparica.

Os povos de terreiro entendem que o projeto da ponte foi elaborado sem a devida compreensão dos aspectos simbólicos, culturais e sociais, dos modos de vida e das questões que envolvem as práticas do povo preto e do povo indígena, indicativo de que o projeto não foi desenhado de forma a contemplar as necessidades dessa parcela da população, fonte da cultura que faz a Bahia ser o que é. Assim, a chegada da ponte é uma preocupação de todas as pessoas presentes no evento, que de fato, não conseguem alcançar a real dimensção do impacto ambiental e cultural. Dentro desse contexto, uma das alternativas lançada é transformar as casas de santo em instituições culturais formalizadas.

De forma firme, simples e sem repetições, as falas das pessoas que ocupavam a mesa eram um convite para a ação. 

Na mesa de abertura estavam presentes: Iá Rosângela, representante da Federação Nacional de Culto Afro Brasileiro - FENACAB e da comissão organizadora; Alapini Balbino de Paula, sacerdote máximo do culto de Egungun, do Ilê Agboulá; Mametu Cafurengá do Terreiro do Campo Bantu-Indígena Caxuté; Ogan Ermeval da Hora, Presidente do Conselho de Cultura e organizador do evento; Janesson Gonçalves, representante do poder público, Diretor de Turismo da Prefeitura de Itaparica.

 

Cada um falou a partir das suas histórias de vida e pontuou os temas a serem contemplados nas pautas para o fortalecimento do povo preto. De forma resumida listamos: Iá Rosângela fala sobre a necessidade de todos os terreiros terem CNPJ para oficialização do espaço como também se colocou a disposição de todas as pessoas do Axé enquanto representante da FENACAB Itaparica; o Alapini Balbino de Paula sinalizou a preocupação com o enfraquecimento das manifestações e, ao mesmo tempo, enfatizou a necessidade da construção coletiva de uma pauta de ações, a partir dos pontos comuns, para o fortalecimento das comunidades tradicionais do povo de santo, com o objetivo, também, de dialogar de forma institcional com o poder público; chama a atenção para a necessidade da união em prol da expansão da visibilidade dos povos tradicionais como os maiores detentores da cultura de Itaparica; Janesson Gonçalves começa falando da importância da participação do povo do Axé nos espaços de discursão do poder público e convida todas as casas de santo para fazerem o cadastro na prfeitura de Itaparica como ponto de cultura municipal, com a intenção de fazer o mapeamento e agilizar políticas públicas disponíveis para atender as demandas de cada um; Mametu Cafurengá fala da importância de se pensar mais alto e acreditar que é possível ultrapassar barreiras; chama a atenção para a importância de se criar escolas com o currículo preto para formar o doutor e pontua fortemente a importância da regularização das comunidades como pessoa jurídica para pleitear os editais que fortalecem as ações nas Casas de Santo; Ermeval da Hora ressalta que esse encontro foi construído e organizado pelo conjunto de terreiros tendo a prefeitura entrado com o apoio solicitado pela organização. Na sua fala ele registra a necessidade das pessoas de santo sairem da sua casa/terreiro, sairem da invisibilidade que se colocam, para participar de ações conjuntas tão necessárias a manutenção das culturas tradicionais.

Após a mesa falar com brevidade, mas com conteúdo imprescindíveis ao momento, é iniciada a palestra com o Alapini Balbino de Paula.

A palestra do Alapini Balbino de Paula

A palestra encerrou na medida que as pessoas se posicionavam quanto as diversas questões, que ia desde a atuação da FENACAB, a presença da Umbanda, até a importância de colocar a logomarca do grupo no material impresso de divulgação. Nós não onseguimos gravar as falas na integra, mas é importante mencionar que todas as pessoas foram ouvidas e, na medida do possível, os questionamentos e dúvidas foram tomados para uma resolução imediata.

 

Pela primeira vez senti, por parte de todas as pessoas presentes, a vontade de unir forças de forma que todos, sem excessão, tenham a mesma importância, independente dos cargos de poder que ocupem dentro das suas casas ou na coordenação do movimento. 

A Ilha de Itaparica de Maria Felipa se fez presente nos meus olhos de participante.

Axé!

bottom of page